sábado, 8 de dezembro de 2012

Campo de flores

O tempo vem se mostrando como matéria rica de memórias e histórias nos trabalhos de grandes músicos, sobretudo os que neste 2012 alcançam a casa dos setenta. Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil, Paulinho da Viola e Jorge Benjor brindam com o grande público mais de meio século de existência, se vivo estivesse o também setentão de peso Tim Maia traria com sua voz poderosamente grave um vigor ainda mais festivo e repleto de rebelde energia. “O melhor lugar do mundo é aqui e agora” já preconizava Gilberto Gil nos tempos joviais de “Refazenda” e Paulinho da Viola se apropria da reflexão do compositor baiano cantando os versos de Wilson Batista “Eu sou assim quem quiser gostar de mim eu sou assim/ Meu mundo é hoje não existe amanhã pra mim/Eu sou assim/Assim morrerei um dia/Não levarei arrependimentos/Nem o peso da hipocrisia”. As agruras e deslumbramentos relativos ao transcorrer do tempo inundam o imaginário lírico-sonoro de Caetano Veloso muito antes de seu desvelar septuagenário : “De modo que o meu espírito/Ganhe um brilho definido/Tempo tempo tempo tempo/ E eu espalhe benefícios/Tempo tempo tempo tempo”. Milton Nascimento com sua grandeza e serenidade canta como se fosse dono dos céus: “Passa o tempo, passa a estrada/Ou será que nada passa?/Nada contra além da graça do amor/O Amor que é raio e centro/Eternidade e momento/Nosso solidário redentor/Único Senhor do Tempo/Amor”.

Introduzo essas minhas digressões musicais com um extenso aplauso aos septuagenários, mas trazendo a cena o ainda sexagenário Chico Buarque de Hollanda que volta ao disco e aos palcos evidenciando um belíssimo trabalho que também deixa entrever o tempo como matéria de lírico desnudamento. Após tantos discos com títulos memoráveis como Almanaque, Ópera do Malandro, Para todos, Cambaio, As cidades e Carioca o compositor retoma sua criação musical num álbum de dez canções que traz estampado na capa com sua foto em preto e branco o simples nome Chico. “Chico” é uma ode ao amor em tempos de madureza, que despoja em palavras e sons a beleza do encantamento amoroso em tempos de depuração, tal qual elucidou Drummond em seu denso e desnudo “Campo de flores”: “Hoje tenho um amor e me faço espaçoso/para arrecadar as alfaias de muitos/amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes”.

“Chico” é uma obra como as demais do artista, plena de sutilezas, delicadezas e reentrâncias que não se captam numa única audição. Os versos de “Diário”, faixa que compõe a abertura do cd exibem uma espécie de auto retrato do compositor, que descreve a si próprio inserido na vida presente e com os homens presentes:“ Hoje topei com alguns conhecidos meus/Me dão bom-dia, cheios de carinho/Dizem para eu ter muita luz, ficar com Deus/Eles têm pena de eu viver sozinho”. Mas essa solidão outrora vivenciada com resignada madureza se transforma em emoção de pura redescoberta incitada por um novo amor: “Hoje afinal conheci o amor/E era o amor uma obscura trama/Não bato nela nem com uma flor/Mas se ela chora, desejo me inflama”. Tal qual Picasso e sua Jaqueline, Miller e sua Anais Nin, Oswald e sua Pagu, o compositor se esbalda de encantamento por sua jovem musa Thais Gullin que submerge e irradia efluxos erótico-epifânicos em seu coração de poeta forte-frágil: “O nosso amor/a nossa íntima canção/Com nosso segredos, os mais picantes/Nos rompantes de um tenor”.

No transcorrer de cada faixa Chico vai desvelando um amor que pulsa além do reino imaginário-sublimado dos sons e palavras. Vinicianamente carnal e lírico o criador despeja seu eros afoito e simultâneamente intenso e denso ao proclamar um amor que é chama, desejosamente infinita na sequência dos agoras: “Meu tempo é curto, o tempo dela sobra/Meu cabelo é cinza, o dela é cor de abóbora/Temo que não dure muito a nossa novela, mas/Eu sou tão feliz com ela”. “Essa pequena” é um canto de pura sedução e singeleza do homem maturado de todo o sentimento “Pretendo descobrir/No último momento/Um tempo que refaz o que desfez/Que recolhe todo sentimento/E bota no corpo uma outra vez” . “Chico” é um disco que traz a tona o renascer de um jovem-senhor-menino que se despoja de todas as armaduras e se permite viver no seu talvez mais pleno gozo de entrega.

O tempo e suas curvas surpreendentes é substrato para a elaboração de versos que camuflam uma suavidade angustiada, sublime instante de epifania amorosa e sonora que se dá na mais bela canção do álbum que celebra a chegada do amor em tempos de madureza comungado com a alegria rítmica e tão brasileira do baião: “Não sei para que/Outra história de amor a essa hora/Porém você/Diz que está tipo a fim/De se jogar de cara num romance assim/Tipo para a vida inteira/E agora, eu/Não sei agora/Por quê, não sei/Por que somente você/Não sei por que/Somente agora você vem/Você vem para enfeitar minha vida/Diz que será/Tipo festa sem fim”. O arranjo construído pelo violonista Luiz Cláudio Ramos é primoroso quando explode cheio de ritmos genuinamente brasileiros entoados pelo coro composto por vozes femininas que traduzem um instante de pura elevação. Em minhas incontáveis e obsessivas audições desta música chamava-me sempre atenção a intencional e genial saída sonoro-poética de Chico, que brinca com o titubear da entrega amorosa transfigurada em criação musical na maneira como pronúncia os versos iniciais de “Tipo um baião”, tal qual uma sutil remissão aos ecos do gago apaixonado Noel.

O tão belo choro- canção “Se eu soubesse” alude em sua leveza descompromissada às canções francesas em que o compositor capta instantes de singelo lirismo. Paris emoldura a atmosfera cinematográfica que reveste ocenário do dueto apaixonado entre o criador e sua musa. Chico se deixa inflamar numa chama de satisfação infinita : “sinto que ainda vou penar com essa pequena, mas o blues já valeu a pena”. Saravá!


Um comentário:

joelcardosos disse...

Daniela,
gosto do seu trabalho...
gosto da maneira como, liricamente, comenta a poesia feito música...
você é uma cantora, uma musicista refinada...
não é à-toa que esta, já há algum tempo, na estrada com reconhecimento de quem entende do assunto...
sinto saudades suas... das nossas conversas sem eira nem beira...
parabéns, amiga...
vamos em frente...
bjs n'alma