domingo, 3 de outubro de 2010

Entrevista com o pesquisador de música popular e historiador Alberto Moby



Daniela Aragão: Como surgiu a música em sua vida?

Alberto Moby: Não sei direito como surgiu a música na minha vida, mas acho que foi mais ou menos assim: Eu sou o filho mais velho de seis. Quando eu tinha por volta dos 5 anos minha mãe já tinha mais 2 filhos. Pra dar uma folguinha pra ela nas tarefas domésticas, meu pai me levava de manhã pra casa dos meus avós maternos, que era pertinho.Minha avó passava o dia inteiro ouvindo rádio. Rádio JB, que só tocava MPB, bossa nova, jazz (estávamos no começo dos anos 1960). Rádio Tupi, que tocava os já clássicos da Era do Rádio; Rádio Mayrinck Veiga, com programação idem; Rádio Nacional, com os anos finais dos programas de auditório, tipo César de Alencar, onde iam Cauby Peixoto, Ângela Maria, Emilinha Borba etc. Na casa que dava fundos para a dos meus avós morava um famoso cavaquinhista da época, tinha um grupo de choro - um "regional", como chamavam na época - chamado Regional do Arlindo. Ele fazia parte do cast da Rádio Tupi e eu morria de orgulho de ser vizinho dele.

Daniela Aragão: Uma entrada no universo musical em alto estilo e diversidade não é Moby?

Alberto Moby: Pois é. Além disso, havia as meninas, adolescentes, do meu bairro, que estavam entrando na era da Jovem Guarda. Me lembro bem de três, cada uma fã de um ídolo diferente: Lila, fã do Jerri Adriani; Ceição, fã do Wanderley Cardoso; e Aninha, fã do Roberto Carlos. E tinha também o Bené, irmão da Lila, que era fã do pessoal da "pilantragem": Simonal, Herlom Chaves e assemelhados, e também dos Beatles.Ou seja: respirei música desde cedinho.Tem mais uma coisinha: meu pai, antes de sair pro trabalho, fazia a barba canarolando, principalmente músicas do Nelson Gonçalves. Me lembro bem nitidamente de uma que dizia "Maria Helena me olhou / Bem dentro dos olhos / E chorou, chorou" rs.Minha mãe gostava do Dorival Caymmi e vivia cantando músicas dele: "Vamos chamar o vento..." e assoviava, imitando o vento, como o Caymmi fazia na gravação.

Daniela Aragão: Para um menino tão novo você se deparou cedo com um leque de possibilidades e riquezas musicais que certamente despertaram esse olhar do pesquisador. Por aí?

Alberto Moby: Não tenho certeza. Posso garantir que me despertaram um certo ecletismo musical que eu cultivo até hoje. O pesquisador nasceu já na faculdade de História (minha segunda faculdade) por causa, principalmente, de um professor.

Daniela Aragão: Recordo-me de que nos conhecemos na ocasião em que você veio a Juiz de Fora fazer uma palestra a convite do Ces ( Centro de Ensino Superior) e que fiquei encantada pela maneira como você trabalhava a música popular brasileira aliando seu processo político ao dos demais países latino americanos. Ali tomei conhecimento de seu excelente livro Sinal Fechado, que tematiza a questão da música popular em dois momentos cruciais, a ditadura Vargas e 68.

Alberto Moby: É verdade. É uma longa história. Mas aí deixa eu voltar um pouquinho, lá pros anos 70, comentar um pouco o que conto na introdução do livro...

Daniela Aragão: Estou meio apressada (risos)

Alberto Moby: Na minha adolescência, claro, já tinha todas aquelas referências musicais. Mas, lá pelos meus 14 anos, uma moça que ajudava minha mãe nas tarefas domésticas (e que era filha de uma amiga dos meus avós) me apresentou o primeiro LP do Tim Maia. Na verdade, eu já tinha ouvido algumas músicas dele no rádio sem prestar muita atenção. Mas depois desse disco me deu vontade de aprender a tocar violão.Meu pai me deu um violão no Natal de 1971. Eu não sabia tocar absolutamente nada, nem tinha grana pra pagar um professor.Daí, saía com o violão nas costas e "colava" com alguém que soubesse tocar o instrumento até sair com um acorde novo. Me lembro que "negociava" o empréstimo do meu violão novinho por 1, 2 dias, em troca de alguns acordes rs.Quando comecei a dominar o instrumento, comecei também, por coincidência, a tomar contato com a realidade mais dura do regime militar.Tive a sorte de ter amigos politizados e preocupados com os destinos do país (coisa, aliás, que me parece cada vez mais rara hoje em dia). Essa coincidência me fez ficar mais atento às letras das canções, principalmente daqueles artistas que tentavam refletir criticamente sobre o país através das letras das músicas, apesar da censura. Me lembro dos encontros que eu e meus amigos fazíamos pra tentar entender as letras do Gonzaguinha, do Chico Buarque, do pessoal do Clube da Esquina etc. e do prazer que a gente tinha quando achava que tinha conseguido entender alguma delas. Quer dizer, a partir daí eu sempre busquei alguma associação entre a música e a realidade social: como crítica ou como crônica. Não é que eu não goste da música que não tem isso, mas, naquela época e durante um tempo longo na minha vida, era isso o que me chamava mais a atenção. Resumindo, é essa história rocambolesca que me levou a pensar o Sinal Fechado. Mas houve um intermediário muito importante: o Prof. Oswaldo Porto Rocha, que, infelizmente, faleceu em 1989, quando o meu lado pesquisador estava só começando.

Daniela Aragão: Interessante você relatar que faziam uma espécie de laboratório musical em que a princípio a política parecia suplantar a estética.

Alberto Moby: Essa tensão entre política e estética, acho que só fui me dar conta dela quando já estava no curso de jornalismo, por causa de uma discussão que rolava no curso em torno dos formalistas russos - a questão da arte pela arte. Era já um período posterior aos "anos de chumbo" (entrei no curso no 2º semestre de 1977). Lá se discutia se a arte tinha ou não que ter comprometimento político, se arte revolucionária tinha ou não a ver com forma revolucionária e coisas assim.

Daniela Aragão: Mas você desde a infância se deparou com um legado de lirismo, basta Caymmi para isso.

Alberto Moby: Claro, eu nunca neguei o lirismo. Só acho que talvez por ter vivido a adolescência numa época, digamos, pouco lírica, acho que eu prestava mais atenção ao lirismo quando ele era "legitimado" por alguém com comprometimento político (obviamente, contra a ditadura). Por isso, as canções de amor do Chico Buarque faziam muito mais sentido pra mim do que as de Roberto Carlos... Não necessariamente porque o Roberto fosse "brega" (ou cafona, como dizíamos na época) e o Chico fosse "arte", mas porque o Chico lutava contra a ditadura e o Roberto Carlos não - ou, pelo menos, não estava interessado em que as pessoas soubessem qual era sua posição sobre o tema. Claro, isso é coisa daquela época e já não faz tanto sentido pra mim hoje. Embora eu continue preferindo o Chico rs.

Daniela Aragão: Numa época em que a postura política impulsionava as pessoas a se dividirem em dicotomias como Chico/ Caetano Tropicália/Jovem guarda, Música alienada/ Música de protesto. Essa postura rígida se diluiu nesse universo atual principalmente porque pesa bastante atualmente a questão comercial da canção. O que acha?

Alberto Moby: Bem, pra ser coerente com o que eu afirmo no livro, acho que sempre houve interesse comercial em todos os segmentos, que a indústria não é boba de dar esse mole. O problema era que música censurada (ou censurável) significava mais riscos para quem investia. Além disso, em muitas situações tenho a impressão de que os artistas que eram contra o regime militar se movimentavam - mesmo que sem planejar.. e mesmo que inconscientemente, talvez - no sentido de formar um bloco antiditadura - que eu identifico com a raiz da denominação MPB em oposição, por exemplo à Jovem Guarda.

Daniela Aragão: De olho na fresta, como argumenta Gilberto Vasconcellos no título de sua obra que também tematiza questões problematizadas por você.

Alberto Moby: Só pra concluir o raciocínio anterior. Com o fim da ditadura, essa motivação e movimentação se dilui. Tanto é assim que podemos identificar facilmente elementos de "protesto" ou "engajamento político" no rock nacional dos anos 80, mas, sem a censura, foi fácil diluir isso e absorver o produto como comercial. Isso, a meu ver, não tem muito a ver com boa ou má qualidade.O livro do Gilberto Vasconcellos foi fundamental pro meu trabalho. Devo a ele o conceito de "linguagem da fresta", que é importantíssimo pro meu trabalho.

Daniela Aragão: Atualmente ele só quer ouvir Villa Lobos e com excessivo purismo chama a turma de Tropicanalha e Máfia do dendê ( risos)

Alberto Moby: Confesso que às vezes me dá uma certa irritação. Acho que só consigo superar isso porque uso muito a internet e acabo conhecendo gente bacana, que nunca toca no rádio ou vai ao Domingão do Faustão e que ainda me dá prazer de ouvir.

Daniela Aragão: Certamente, você é ávido por conhecer as produções novas que muitas vezes ficam fora do circuito comercial não é?

Alberto Moby: Sou. Mas é mais por falta de alternativa... Onde eu iria conhecer trabalhos como o seu se dependesse da grande mídia?

Daniela Aragão: Pois é e nós músicos e artistas acabamos dialogando com nossos pares e tentando vencer uma série de obstáculos. Produz-se cada vez mais qualidade num esquema alternativo.

Alberto Moby: Mas acho, Dani, que isso não acontece apenas na música. Acontece também na literatura, cinema etc. Todo mundo quer o prêt-à-porter, o fast food. Quem pensa muito consome pouco, é seletivo,desconfia, faz escolhas. Isso é a essência do não-capitalismo. O grande capital não está interessado nisso, né?

Daniela Aragão: Com certeza, usei a palavra artistas para abranger os demais produtores de arte. E o que você acha do papel da internet em relação a isso?

Alberto Moby: Acho que a internet está num momento de indefinição que, por enquanto, está a nosso favor. Mas não sou muito otimista. Aprendi a viver num mundo em que tudo se vende e tudo se compra e em nome disso o produto vale mais que o processo de produção, o comerciante vale mais que o criador. Fico com medo de estar absurdamente mergulhado em alguma teoria da conspiração, mas não posso imaginar que o grande capital vá ficar parado esperando pra ver o que acontece com a internet. Acho que só a ocupação anárquica e "anarquista" da internet pode fazer frente a isso. Por isso compartilho tudo que posso na internet: imagens, sons, textos, ideias.

Daniela Aragão: Eu consigo divulgar meus trabalho de maneira otimizada pela internet e tenho amigos assim no myspace. Acho que o que nos assola é a angústia do excesso de informações e ofertas que faz com que as coisas se diluam.

Alberto Moby: Outro grande "perigo" desses tempos pós-modernos: a ilusão de que mais quantidade informação implica necessariamente em se estar melhor informado. Conhecimento requer paciência, análise, reflexão. Acho que isso vale pra qualquer tipo de conhecimento, inclusive pra fruição da arte. Mas também acho que não dá pra voltar atrás e que, portanto, nós é que temos que ir aprendendo caminhos.

Daniela Aragão: Concordo plenamente

Alberto Moby: Ainda com relação a isso, acho que talvez a angústia se dê porque acabamos embalados por esse canto de sereia da quantidade. Li uma crônica sobre o show da Ivete Sangalo nos EUA (acho que em Nova York). Foi pra milhares de pessoas. Isso significa mais exposição na mídia e muitos dólares no bolso. Mas, com aquela voz tão bonita e aquela personalidade tão forte, podia cantar algo mais substancial...

Daniela Aragão: Ainda tem a questão de como a mídia vende as "verdades"

Alberto Moby: Pois é. Lembro de 4 cantoras importantes do final dos anos 70 e começo dos 80 que optaram pela quantidade e "repaginaram" a carreira: Simone, Fafá de Belém, Joana e Zizi Possi. Tenho a impressão que o resultado foi desastroso para as 4. Fafá chegou a virar cantora de fado em Portugal e agora não tenho a menor ideia do que faz. Joana andou cantando sertanejo e sumiu. Simone se perdeu, tentou voltar e, depois que virou amiga da Ana Maria Braga, nem CD em homenagem a Martinho da Vila a salvou do ostracismo. Acho que a Zizi foi a única que, ao voltar, ainda encontrou alguma receptividade do antigo público e suponho que deva ter se arrependido bastante de coisas do tipo "perigo é ter você perto dos olhos / mas longe do coração..."

Daniela Aragão: Com certeza, Zizi retomou seu eixo com aquele belo disco "Sobre todas as coisas", que foi lançado na década de noventa. É muito séria a questão dos produtores, como ele podem conduzir ao céu ou ao inferno a carreira de uma artista que se sujeita a imposições.Esta semana assisti ao belo documentário sobre Nana Caymmi, o sentido absoluto do cantar, uma aula de dignidade e sabedoria musical.

Alberto Moby: Sobre a questão dos produtores, há um livro que me parece fundamental, que é o Noites Tropicais, do Nelson Motta, um desses produtores. Há coisas que ele conta, com a maior naturalidade, de arrepiar os cabelos.

Daniela Aragão: Me recordo bem desse livro, gosto dos trabalhos que ele fez com Elis.

Alberto Moby: Claro. É a tal da "grana que ergue e destrói coisas belas" de que fala o Caetano. O problema é você saber o que ergue e o que destrói. Dinheiro é muito bom, mas não se pode vender tudo pra ter dinheiro...

Daniela Aragão: Com certeza. Entre o que tem ouvido hoje o que lhe chama atenção, talentos escondidos na periferia?

Alberto Moby: Como eu sou muito eclético, fica até difícil. Mas, vá lá: gosto da Roberta Sá, do Rodrigo Campos, da Marina de la Riva, da Tatiana Parra, da Mariana Aydar, do PC Castilho, do Max Gonzaga, da Ana Costa, da Barbara Mendes...

Daniela Aragão: Algo te inspira a escrever outra obra reflexiva sobre nossa música a exemplo de seu lúcido Sinal fechado?

Alberto Moby: Atualmente, mesmo que eu quisesse, acho que isso seria meio difícil. Por razões muito pessoais, inclusive de sobrevivência material, estou vivendo em Angra dos Reis e trabalhando como professor primário. Nessas condições, fica bastante difícil pesquisar. Falta tempo e o acesso aos grandes centros de pesquisa é mais difícil. Talvez, me aposentando (nem falta muito...), eu pensei nisso.

Daniela Aragão: Certamente esbarramos com a questão gritante da sobrevivência, vou tocando esse espaço de discussão na base da força ,coragem e paixão.

Alberto Moby: Pois é. "Nós somos medo e desejo, somos feitos de silêncio e som", como diria o Nelson Motta, de quem falei mal agorinha mesmo, rs."

Daniela Aragão: Com certeza Moby. Adorei nossa conversa, super obrigada e o espaço aqui está livre para você divulgar seus trabalhos.

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