quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Trocando em miúdos



Recebi por email a programação do Seminário Música popular, poesia e memória, a ser realizado na PUC-RIO nos dias 28/02 a 2/10. Durante uma semana passariam pela universidade pesquisadores, musicólogos, jornalistas, escritores, poetas, letristas, compositores, cineastas, músicos e intérpretes. Manhãs, tardes e noites dedicadas a fruição do néctar de nossa música popular brasileira. Entre as mais recentes produções cinematográficas que abordam o universo da MPB foram exibidos A casa do Tom (documentário que reúne as últimas imagens do compositor, coletadas pela viúva Ana Lontra), Vento Bravo (documentário que aborda com riqueza de detalhes a trajetória artística do músico Edu Lobo) e Palavra Encantada (documentário que reflete com muita propriedade sobre as relações entre poesia e música). Os debates que aconteciam todas as tardes em duas sessões, colocou lado a lado Paulo César Pinheiro e Luiz Tatit, Bia Paes Leme, Tárik de Souza e Fred Góes, Zuza Homem de Mello, Arthur Dapieve e Santuza Cambraia, Ruy Castro e João Carlos Carino, Antônio Risério e Tom Zé, José Miguel Wisnik e Júlio Diniz, entre outros.

Não contrariando o hábito, mantive meu caderno de anotações full time ao meu lado, consciente da impossibilidade de apreender com palavras a riquíssima diversidade de inspirações poéticas e sonoras. Vencida uma semana, dou uma passada de olhos em meus comentários que mal reconheço, prefiro abandonar então a imprecisão do registro escrito e acessar minha memória.

Impossível não ficar extasiada diante da imagem de Francis Hime cantando e acompanhando-se ao teclado. Cenário cru, luz sem demasiados efeitos, um homem bonito, elegante e sereno no alto de seus setenta anos presenteia a platéia com suas antológicas composições realizadas com os parceiros Vinícius de Moraes, Chico Buarque, Olivia Hime, Abel Silva, Geraldo Carneiro e Ruy Guerra. Inicia a apresentação com um sorriso doce nos lábios e justificando a ausência da cantora Olivia Hime:”Ela está com problema de garganta”. Salve o compositor popular, Francis toca a primeira sequência de acordes e inaugura o retorno aos tempos de delicadeza: “Vim, cheio de saudade/Cheio de coisas lindas pra dizer/Vim porque sentia/Que nada existia fora de você/Nem a poesia, amor/Na sua ausência quis me receber”. Pra machucar meu coração, manda em seguida Minha, deslumbrante parceria com o cineasta Ruy Guerra, considero esta canção entre as mais belas de nosso cancioneiro: “Minha és e sou só teu/Sai de onde estás pra eu te ver/pois tudo tem que acontecer/Tem de ser, tem, tem de ser, vem/Para sempre,para sempre”. Francis interpreta-a lindamente com sua autoridade de compositor- os acordes cheios despontam na harmonia, que em nenhum momento cai no previsivel. Neste artista a informação da música erudita se funde ao jazz e o popular, resultando em criações de qualidade ímpar. A trilha sonora composta por ele para o filme Lição de Amor (Eduardo Escorel), adaptação da obra Amar verbo intransitivo, de Mário de Andrade, é de um lirismo singular. Perdi a conta de quantas vezes assisti ao filme fixada na cena final, em que Lilian Lemmertz com a face pálida segue seu caminho solitária, conduzida pela sinfonia de Francis. Com Geraldo Carneiro, um de seus parceiros mais assíduos nos últimos anos, Francis exercita levadas mais sincopadas que se casam muito bem com o feeling bem humorado do poeta. Francis ganhou definitivamente a platéia da PUC ao interpretar a melô da maça: “Quando musiquei este delicioso poema de Geraldinho, não sabia se adotava um ritmo binário ou ternário. Na dúvida fiz das duas formas, o que resultou numa mistura de salsa, rumba, valsa e pasodoble”.

Maria Bethânia acompanhada por seu arranjador, violonista e diretor musical Jaime Além, encerrou o evento. Sentada no chão ao lado de minha irmã e cercada por estudantes, fãs e curiosos, me embebi de poesia pura. A cantora ora lia, ora cantava textos, poemas e canções de Fernando Pessoa, Ferreira Gullar, Guimarães Rosa, Manuel Bandeira, Waly Salomão, Caetano Veloso, Mário de Andrade, Dorival Caymmi, Capinam, Paulinho da Viola e tantos mais. O cenário sóbrio reproduzia alguns poemas manuscritos em preto sobre folhas brancas. Bethânia inteiramente vestida de branco parecia levitar: etérea, plena, sublime. Ela é a artista dos palcos por excelência, no pequeno espaço do auditório da PUC essa mulher resplandecia gigantesca. A manifestação de gestos contidos, porém espontâneos e certeiros, reforçavam a concentração na força da emissão das palavras. Ao fim da apresentação apertei as mãos de minha irmã e vi que seus olhos lacrimejavam, emudeci, emudecemos.

Um comentário:

figbatera disse...

Puxa, Daniela, foi mesmo um privilégio presenciar um evento de arte tão enriquecedor.
Gostaria muito de ter estado nessa.