quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Uma vida de mulher



Essa menina, essa mulher, essa senhora

Em quem esbarro a toda hora no espelho casual

É feita de sombra e tanta luz

De tanta lama e tanta cruz que acha tudo natural

Joyce e Ana Terra



“Um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar”. Esse era o lema de Teodoro, o metódico personagem de Dona Flor e seus dois maridos, de Jorge Amado. Engraçado como essa frase me vem a calhar agora, anos após a leitura do romance. O poeta-professor Gilvan Procópio, meu amigo e mentor intelectual de longa data, costumava brincar comigo repetindo essa frase de Teodoro. Através da literatura, que sempre foi nosso maior elo, ele tentava amenizar minha inquietude existencial/intelectual.

Recordo-me que quando eu era sua monitora de literatura brasileira, chegava na sala em que trabalhávamos abarrotada de livros, cds e papéis que não acabavam mais. Eu espalhava todo o meu caos na mesa e quase afogava Gilvan de perguntas. Eu queria entender tudo, ouvir tudo, ler tudo ao mesmo tempo. O que sobrava era sempre uma sensação de angústia e impotência.

Dizem que a curiosidade é o que nos impulsiona, mas a autocobrança é mesmo de matar. Aos dezoito anos, enquanto o meu íntimo gritava por “Confissões de adolescente”, de Maria Mariana, minha ansiedade me jogou para “Confissões de mulheres de trinta”, a peça de seu pai, Domingos de Oliveira. Saí do teatro imaginando como seria eu aos trinta: uma mulher independente? Emocionalmente forte? Segura? Senhora de mim? Mãe? Viajada? Feliz?Como Drummond, ganhei e perdi meus muitos dias até aqui: chegar aos trinta começa a doer e dar mais prazer. Assisto agora ao dvd Malu Mulher, vinte e sete anos após a estréia da minissérie. Consideravelmente distante da época de seu lançamento, e muito próxima do meu momento de vida, assisti com a sensação de que a frase de Teodoro finalmente fazia sentido.Para os que ainda eram crianças como eu nos idos de 1979/80 , Malu Mulher foi um dos mais competentes trabalhos realizados pela televisão. Fiquei muito impressionada. E não pelos “grandes” nomes do elenco – que em sua maioria permanecem até hoje banalizados, figurando em quase todas as novelas da Vênus Platinada – mas sim pela qualidade dos textos, o formato, o conteúdo, a direção, a interpretação.

Malu colocava em destaque a nova mulher que começava a surgir. A mulher que iniciava a luta por sua emancipação profissional e emocional e que se libertava para encarar de frente sua individualidade e toda a sobrecarga de uma cultura predominantemente machista. Os episódios selecionados para o dvd possibilitam ao espectador uma visão ampla dos vários temas polêmicos abordados na minissérie – aborto, adultério, gravidez, pílula anticoncepcional, violência doméstica e trabalho.

A personagem, vivida com grande garra por Regina Duarte, era o protótipo do novo modelo de mulher que florescia na sociedade brasileira. Socióloga, trinta e dois anos, classe média, separada e com uma filha, ela enfrentava a batalha e assumia com coragem e força as inúmeras adversidades que apareciam em seu destino. Mantinha sozinha sua casa, sustentava a filha pré-adolescente com a contribuição da pensão do marido e de seus ganhos como socióloga, e vivia com dignidade seus princípios e desejos.

O direito de ter e assumir o desejo é a questão fundamental que move a existência de Malu e de outras mulheres que cruzam o seu caminho. O desejo feminino visto em suas várias vertentes, não somente como questão sexual, mas como autonomia e consciência de escolha. A mulher-Malu e suas companheiras não mais desejavam se limitar somente aos cuidados da vida doméstica, circunscrita ao interior da casa. Elas queriam fazer parte de um universo que então parecia permitido somente aos homens. Desejos que hoje podem figurar como banais, mas que na época chocavam os mais conservadores. A mulher que saía sozinha, fumava, dirigia e assumia uma vida independente era muitas vezes tachada de “mulher da vida”. Exatamente ela, que lutava pela plenitude de uma “vida de mulher”.

Um dos episódios da série, intitulado “Legítima defesa da honra”, é o que melhor explicita a onipotência masculina. A atuação de Gianfrancesco Guarnieri é primorosa ao interpretar um marido conservador e violento que não aceita as opiniões e desejos de sua esposa, representada por Marilia Pêra. O problema da violência doméstica neste caso é gerado pela incompatibilidade entre o posicionamento irredutivelmente machista do homem e a expressão dos desejos existenciais da esposa.

“Duas vezes mulher”, escrito por Manoel Carlos, é um dos momentos mais comoventes de Malu Mulher. A história toca nas filigranas da sensibilidade feminina ao traçar a união entre três gerações de mulheres através da presença e ausência da menstruação. O diálogo entre Malu e sua mãe, que sofria as transformações da menopausa, se liga emocionalmente com o diálogo entre Malu e sua filha, que acabara de ficar menstruada. Na beirada da cama, Malu conversa emocionada com a filha Elisa (Narjara Tureta), deixando às claras toda a cumplicidade e fragilidade de mãe-mulher. Considero esta cena uma das grandes performances de Regina Duarte, infinitamente superior a suas atuais representações, extremamente caricatas:

“Bonito isso que aconteceu entre você e a sua avó, vocês se encontraram no meio do caminho. Não adianta, por mais que eu tente, eu acho tudo natural, mas ainda me espanto diante das coisas mais simples assim, como se fosse uma menina. As vezes me sinto tão infantil, no sentido de que eu fico espantada diante das coisas mais banais da vida. As coisas simples são tão bonitas. Por exemplo, eu chorei quando vi pela primeira vez uma cachoeira, eu fiquei muda olhando a cachoeira. As coisas simples são tão emocionantes, tão bonitas. Por exemplo, isso que aconteceu hoje. È bonito, é emocionante, me balançou”.

Ao assistir a essa e outras histórias, a cada momento tornava-se mais inevitável a associação com a história de muitas mulheres que conheço à distância ou que me são próximas. “Não me venha falar na malícia de toda mulher/ cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, disse um dia Caetano. Não importa o tempo, se passado ou presente, tradicional ou mais libertário, cada mulher deve assumir a dor e a delícia da plenitude de seu ser.

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