quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Um jantar com a diva


Alaíde Costa é uma das maiores damas da nossa Música Popular Brasileira. Pura delicadeza e intensidade. Nosso jantar foi muito emocionante.

Era uma noite quente e chuvosa de um domingo do verão passado, no Rio de Janeiro. Eu e Ronaldo nos dirigíamos para o Teatro Rival, na Cinelândia, onde iríamos assistir ao show de Mart’nália. Para nossa decepção, havíamos confundido a data de encerramento da temporada, que tinha terminado na véspera. Para não “perdermos a viagem”, procuramos algum restaurante próximo, que justificasse nossa ida a um local hoje pouco recomendável da noite carioca. Ronaldo lembrou-se de um Galeto famoso nas redondezas.

Ao atravessarmos a rua, passa súbito à nossa frente uma mulher que parecia Josephine Baker, como que saída dos anos 1920, com lindas trancinhas que minuciosamente desenhavam seus cabelos. Não pude acreditar, mas a “Josephine” era na verdade uma das divas da canção brasileira. Gritamos juntos, alto e bom som: Alaíííííídeeeee!!! Com um mover todo delicado, a mulher virou levemente a cabeça para trás, nos olhou, e disse baixinho, com um ar de velha conhecida: Oi!.

Numa mistura de emoção e surpresa, convidamos Alaíde Costa para jantar conosco. Com um sorriso doce nos lábios, ela aceitou como se nos conhecesse há muitas décadas. Não demorou mais do que meia hora para que nos tornássemos “amigas de infância”. Por obra do destino e do acaso eu estivera muito próxima de Alaíde nos últimos tempos, sem que ela sequer suspeitasse.

Logo soube que não havia surpresa no fato de Alaíde Costa ter cruzado meu caminho naquela noite. Na verdade, ela acabara de chegar de São Paulo e estava hospedada num hotel próximo ao Teatro Rival, local em que no dia seguinte iria se apresentar, concorrendo ao “4° Prêmio BR Rival”, na categoria de melhor cantora. Concorreu e ganhou, é claro.

A primeira vez que ouvi Alaíde foi num cd produzido no final da década de 1980, em que ela interpretava com grande sensibilidade a canção “Bela Bela”, um fragmento do “Poema Sujo” de Ferreira Gullar musicado por Milton Nascimento: “bela bela/ mais que bela/ mas como era o nome dela?/ não era Helena nem Vera/ Nem Nara nem Gabriela/ nem Tereza nem Maria/ seu nome seu nome era”.

O que me impressiona em Alaíde Costa é a afinação, o timbre raro, a emoção e sobretudo a sua capacidade de usar os “erres”. Se me explico bem, Alaíde tem um probleminha na emissão dos “erres”, que lhe transmite o seu maior toque de singularidade. Não é o “r” acentuado, típico dos cantores que começaram na época do rádio, no período Pré-Bossa Nova, como Elizete Cardoso. É um “r” que faz parecer que a língua é presa.

Nos meses de fevereiro e março de 2005, gravei meu primeiro cd no estúdio de Sergio Lima Netto, em Araras, o mesmo em que Alaíde Costa gravara alguns meses antes seu mais recente trabalho “Tudo que o tempo me deixou”. Marinheira de primeira viagem, entrei no estúdio praticamente crua. Algumas faixas ficaram prontas com a voz- guia, que foi feita no calor da hora, ou seja, junto com os músicos. Já na maior parte delas, eu tive que criar um clima: fechava os olhos, sentia o que a letra e a canção me diziam, pedia ao Sergio para apagar ainda mais a luz do estúdio e mandava ver.– Não pesa muito nos erres Daniela, você ainda não é a Alaíde – dizia o Sergio entre gostosas gargalhadas. Pois é, eu tinha algo em comum com a diva da canção, ambas cantávamos com os “erres franceses”, só que Alaíde era Alaíde Costa e eu uma iniciante.

Durante grande parte do período em que colocava a voz, Alaíde estava presente como lição de sabedoria: “Alaíde tomava um conhaque para esquentar a voz e cantava, cantava, cantava, sem se preocupar com os erres”, me dizia o Sergio. Confesso que quando fui gravar a canção “Agradecer” eu queria ser Alaíde Costa, para não precisar de me preocupar tanto com essa palavra, que, agradecida, prefiro nem pronunciar hoje, pois ela me vem cheia de “erres” mal-agradecidos.

Fui ouvir o belíssimo cd de Alaíde Costa meses depois da gravação do meu. Intenso, verdadeiro, lírico, um primor da primeira à última faixa. Aos setenta anos de idade, a voz de Alaíde permanece em sua plenitude e ela rememora em seu cantar as marcas do tempo em sua vida e sua arte, na parceria de Gilson Peranzzetta com Paulo César Pinheiro: “Tudo que o tempo me deixou/ Foi a lembrança que o meu peito traz/ De um grande amor de que eu não fui capaz/ E dessa dor que não me deixará jamais/ Tudo que o tempo me deixou/ Foi o consolo de emoções iguais/ A luz difusa do abat-jour Lilás/ Dessas canções que eu já chorei demais.”

No vaivém de nosso bate-papo, enquanto sorvia lentamente sua canja, Alaíde falava baixinho e seus gestos eram delicados como os da verdadeira dama que é. Disse-me que gravou pouco durante o longo período de sua carreira, pois se recusava a cantar aquilo que não tocasse seu coração.

Naquele momento ambas cantávamos Sueli Costa, uma compositora que acalenta nossas almas. De Sueli Costa e Abel Silva, Alaíde gravou “Voz de mulher”, que me parece um retrato de si mesma. Ouço sempre “Voz de mulher”, a voz da grande mulher e minha eterna diva Alaíde Costa: “Desde que nasci/ A voz da mulher/ Me embala/ Me alegra/ Me faz chorar/ Me arrepia os cabelos/ Me faz dançar/ Me cala ressentimentos/ Me ensina a amar/ Uma mulher cantando nas Antilhas/ Uma voz de mulher/ Nos rádios do Brasil”.

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