quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Sobre cores e Madeleine


Após duas crônicas sobre a proximidade entre som e cor, insisto mais uma vez no tema, que parece não ter fim. O mês de março, que já se encerra, despede-se com um tom azul marinho de fim de verão. “Águas de março” é canção cinzazulada: “São as águas de março fechando o verão/ É a promessa de vida no teu coração”.


O mês de abril costuma passar meio despercebido, mas Vinicius juntou-se a Toquinho para dedicar-lhe “As cores de abril/ Os ares de anil/O mundo se abriu em flor/ E pássaros mil/ Nas flores de abril/ Voando e fazendo amor/ O canto gentil/ De quem bem te viu/Num pranto desolador/ Não chora, me ouviu/ Que as cores de abril/ Não querem saber de dor”.


Em “Calendário do som”, Hermeto Pascoal compôs uma canção para cada dia do ano. Esse albino que quase não vê cores, transforma tudo em som. Pulando alguns meses, chego a setembro, que é um mês dos mais deslumbrantes pelas manhãs muito azuis e a diversidade de flores coloridas. Canto bem alto a amarela “Sol de primavera”, de Beto Guedes e Ronaldo Bastos: “Quando entrar setembro/ E a boa nova andar nos campos/ (...) Mesmo assim não custa inventar/ Uma nova canção/Que venha nos trazer/Sol de primavera/Abre as janelas do meu peito”.


Um de meus programas prediletos é vasculhar aquelas livrarias enormes com cds, livros, dvds, almofadas, mesas e café. Bom demais é poder colocar o fone nos ouvidos e ficar escolhendo as músicas nos cds giratórios que ficam nas torres. Numa delas, ouvi pela primeira vez Madeleine Peyroux, que tem cor de rosa. Escutei a primeira faixa de seu cd “Careless love” sem fazer a mínima idéia de quem era aquela cantora com timbre tão belo e raro. No início, lembrava um pouco Billie Holiday, mas não se tratava de mera cover. Madeleine possui marca muito própria.


Segui ouvindo a segunda, terceira, quarta faixa, até que decidi levar o disco, seduzida pela voz, as canções, os arranjos, a concepção do encarte. Uma mulher jovem e bela de tez muito alva sentada solitária numa cadeira no centro de uma vila. No chão ao lado da cadeira um vaso de rosas vermelhas e uma rosa perdida, meio murcha, fora dele. As pernas de Madeleine estão cruzadas e meio à mostra, saltando do vestido longo em tom dourado. Em tudo um ar de musa romântica. Puro lirismo.


Pouco conhecida no Brasil, Madeleine Peyroux é norte-americana da Geórgia e viveu entre o sul da Califórnia, Nova York e Paris. Seu canto é introspecção, delicadeza, celebração da vida: alegria, tristeza, sedução. Embora conectada ao século XXI, ela parece muitas vezes encontrar-se na Paris do início do século XX, cantando para uma platéia que envolve Henry Miller, Anaïs Nin, Gertrude Stein, Picasso.


Alma de “clochard”, Madeleine começou a cantar aos quinze anos, quando descobriu os artistas de rua do boêmio Quartier Latin. Integrou o grupo “The Riverbo Shufflers”, primeiro passando o chapéu e depois cantando. Aos dezesseis anos fazia parte dos “The lost Wandering Blues and Jazz Band”, grupo com o qual girou por dois anos em turnê pela Europa, interpretando canções de estrelas do jazz como Billie Holiday e Ella Fitzgerald.


Ao ver recentemente o filme “Um hino ao amor”, sobre Edith Piaf, lembrei-me logo de Madeleine Peyroux. Piaf também começou a cantar nas ruas de Paris quando era ainda uma menina. Duas forças da natureza, Piaf e Madeleine provaram a “vida vagabunda” e chegaram até o estrelato. Volta-me à memória uma das mais comoventes cenas do filme, quando a menina Edith (Marion Coutillard) canta “A Marselhesa” numa das ruas de Paris. Um canto intenso e profundo que vem da mais pura dor e sensibilidade e que paralisa os transeuntes.


Em 1966, aos vinte e dois anos, Madeleine Peyroux gravou “Dreamland”, seu primeiro disco. Logo após o sucesso do lançamento e das apresentações que englobavam abertura de concertos para Sarah McLachlan e Cesaria Évora, e diversas aparições em conceituados festivais de jazz, Madeleine desapareceu. Avessa ao universo das celebridades, a cantora retornou às ruas de Paris e passou a cantar apenas ocasionalmente em alguns clubes nos Estados Unidos. Ela optou por viver durante seis anos uma vida anônima, distante de qualquer associação com a Madeleine Peyroux estrela.


Em “Careless love”, Madeleine canta o amor. Ouvi-la é querer estar em Paris tomando café no “Deux Magots” ao lado de Sartre e Simone de Beauvoir. É querer estar em Manhattan ao lado de algum personagem de Woody Allen, ou do próprio. É querer estar numa esquina qualquer do metrô de um país qualquer, ouvindo um canto profundo e sem fronteiras.


O disco é realizado com a formação básica piano-baixo-bateria. Arranjos bem elaborados, mas sem o virtuosismo jazzístico que poderia suplantar a interpretação de Madeleine. As composições se alternam entre folk, jazz e blues. Sobretudo no blues sobressai a experiência do canto nas ruas “onde o povo está”.


E por falar em cores, uma das canções, “J’ai deux amours”, é uma declaração de amor a Paris que tem cor verde de frescor apaixonado: J’ai deux amours/Mon pays et Paris/ Par eux toujours/Mon coeur est ravi”. Ouvir Madelaine Peyroux é ultrapassar tempo e histórias, romances e sonhos. Sua voz se parece com tudo o que é belo e suave. Uma rosa que salta vermelha do chão de um beco sujo da metrópole. Redescobrir o encantamento, um encontro onde tudo nos encanta.

Nenhum comentário: