quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

O perfume de Bethânia




Gosto muito de escrever crônicas e mais ainda de receber emails de amigos e desconhecidos que fazem comentários sobre meus textos. Nesses quase três anos no ofício de cronista, jamais recebi tantos emails quanto na semana passada. Muitas palavras motivadas pela crônica “A imagem-cor do som”.

Tocou-me forte o interesse das pessoas pela relação som/imagem. Alguns me revelaram os pintores que lhes remetiam a certas canções, outros citaram canções que correspondiam a determinadas cores, outros ainda mais experientes no ramo sonoro detalharam os acordes que formariam uma suposta “orquestra arco-irís”. Pollock talvez desse conta de traduzir toda essa loucura em obra de arte.

Uma profusão de idéias coloridas e sonoras inundou meu pequeno mundo eletrônico e me transportou para o belo poema “Voyelles”, de Rimbaud, em que o poeta francês elabora correspondências entre vogais e cores: “A negro, E branco, I vermelho, U verde, O azul:vogais,/Algum dia direi desses vossos ocultos nascimentos.”

Que se tenha notícia, Rimbaud foi o primeiro poeta a construir através de palavras a afinidade palavra-som-cor. Depois dele sucederam muitos poetas e letristas. Como Chico Buarque e Caetano Veloso costumam ser meus paradigmas de qualidade dentro da MPB, destaco mais uma vez o baiano na aquarelada canção “Trem das cores”: “A franja na encosta/ Cor de laranja/ Capim rosa chá/ O mel desses olhos luz/ Mel de cor ímpar/O ouro ainda não bem verde da serra/ A prata do trem/ A lua e a estrela/ Anel de turquesa/ Teu cabelo preto/ Explícito objeto/ Castanhos lábios/ Ou pra ser exato/ Lábios cor de açaí...”.

Música é cor, mas pode ser também perfume como atesta Cartola: “Queixo-me às rosas/mas que bobagem, as rosas não falam/simplesmente as rosas exalam/o perfume que roubam de ti”. Retorna-me a memória o delicado filme “Música é perfume”, do francês George Gachot, dedicado à cantora Maria Bethânia.

“Música é perfume” é sensibilidade pura, uma das maiores divas da canção brasileira revelada por muitas luzes. Luz de Santo Amaro, luz do Rio de Janeiro, luz de jardim, luz de mar, luz de camarim, luz de palco, luz de estúdio. A espontaneidade é a marca maior do filme que tem um pouco de making of, mas com grande categoria artística.

O filme já começa exalando poesia, num vôo panorâmico sobre as águas do mar de Copacabana. Alguns versos de “Pátria Minha”, de Vinicius de Moraes, inauguram o mergulho “nas profundezas da alma”: “Se me perguntarem o que é minha pátria direi:/ Não sei. De fato, não sei/ Como por que e quando a minha pátria/ Mas sei que a minha pátria é a luz, o sal e a água/ Que elaboram e liquefazem a minha mágoa/ Em longas lágrimas amargas”.

O filme mostra momentos mágicos iluminados pelas luzes da ribalta – como no espetáculo Brasileirinho, um dos mais reconhecidos da carreira de Bethânia. Brasileirinho abdica da centralidade baiana ao optar pela representação de todos os brasis. O encontro com as cantoras cariocas Miúcha e Nana Caymmi é emocionante, estilos de voz muito próprios, mas que ao lado de Bethânia compõem um conjunto harmônico.

A presença de declarações como a de Susana Moraes explica e justifica o mito Bethânia. Exótica, bonita, feia, misteriosa, elegante, sóbria, sensual, exagerada, Maria Bethânia comporta uma infinidade de antíteses. É nessa essência indecifrável que reside o grande trunfo da artista.

Outros depoimentos giram em torno da voz de Bethânia, da singularidade de seu timbre inconfundível. Sua mãe, Dona Canô, conta que na infância a filha era impedida de cantar na escola devido à estranheza de sua voz muito grave. A menina apenas representava, recurso que lhe valeu muito no futuro.

Utilizando-se de muitos closes, o diretor soube valorizar os traços e detalhes de Bethânia. Afeita às sutilezas, a câmera mais insinua do que explicita. Um close nas mãos já envelhecidas, outro nos longos cabelos, outro no rosto. A voz é um componente/resultado da mulher Maria Bethânia, por isso a emoção pulsa por todos os lados.

Embora apareçam muitas cenas de estúdio, para Bethânia o palco é o espaço abençoado, transcendente: “A vida no palco é uma vida tão dele, tão diferente da vida real. Quando eu acordo de manhã penso em coisas tão banais. Coisas que não me servem pra nada em cena. Na madrugada, e mais do que de manhã, eu tenho idéias, se eu fizesse tal canção. Mas quando acordo de manhã acordo Maria Bethânia dona de casa, careta, chata, comum”.

As partes mais tocantes dizem respeito aos momentos aparentemente mais espontâneos, como quando Bethânia canta “Samba da bênção”, de Baden e Vinicius, apenas acompanhada pelo violão de Jaime Além. Diz Bethânia: “Samba da Bênção é uma canção chave para minha vida. ‘É melhor ser alegre que ser triste’/ ‘O samba é a tristeza que balança’. Isso é de uma compreensão do samba, pois o samba é de uma dor, um lamento negro...”.

Bethânia é uma artista que só veio amadurecendo no transcorrer do tempo. Nos mais de 40 anos de carreira manteve sempre um trabalho íntegro, honesto com suas origens e crenças. Hoje Maria Bethânia é uma mulher madura e uma artista lapidada pelo tempo e muitas vivências. Acabei de reouvir o disco Mel, entre tantos o meu preferido, que ainda mantenho cuidadosamente em vinil. Fico pensando qual seria o perfume da voz de Bethânia, com certeza um bem marcante.

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