quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Maré para Tarumim


Acaba de nascer minha linda sobrinha Tarumim, parto normal feito em casa com assistência do médico da família, que foi a Barcelona especialmente para isso. Tarumim é meio brasileira, meio espanhola, e seu nome, de origem tupi-guarani, significa mãe das águas doces. Só conheço Tarumim por fotografia, mas me confesso encantada com essa espanholinha que se agrega à minha família. E como não consegui escrever ainda nenhum verso ou compor uma melodia à sua altura, dedico-lhe o belo cd “Maré” que Adriana Calcanhotto acaba de lançar.

Oitavo álbum de Adriana Calcanhotto, “Maré” e indiscutivelmente o melhor deles - obra de uma artista amadurecida que domina plenamente as artimanhas do universo sonoro e poético. Aqui a cantora/compositora retoma o mar como tema, elemento central da trilogia iniciada em “Marítmo” (1998). Gaúcha de nascimento e carioca por apaixonada adoção, Calcanhotto jamais se esquece de cantar seu amor e espanto pelo Rio de Janeiro: “Pelo Pepê/ Pelo copa/ Pela costeira/ Pelo recorte do mapa/ Pela restinga/ Pela praia/ Até marambaia/ Até onde vai a vista/ No posto nove/ A onda revolta/ devolve o surfista”.

O conceito visual do encarte do cd é clean, de acordo com a estética minimalista da artista: “Gosto de reduzir, chegar à essência”. Sobre o fundo azul marinho se sobrepõem as letras brancas e várias fotos de Calcanhotto em movimento. Com um vestido longo e muito largo ela insinua as ondulações do mar. Os pés, também muito brancos, em close, pisam firmes na areia e o azul mancha seus dedos. Seu rosto em destaque na capa faz referência a Tétis, divindade que desponta do oceano. “Maré” é uma saudação às mulheres do mar: Iemanjá, Calipso e Tétis. Todas essas mulheres são, na verdade, Adriana Calcanhotto.

No cd, o mar é matéria para a imaginação que expressa ritmo-movimento, ritmo-imagem, ritmo-poesia. O mar transcende a função de simples cenário e sua amplitude metafórica revela o leitmotiv principal, que é a vida. Em fluxos de desejo, amor, melancolia, inquietude e prazer as águas de “Maré” são uma inundação de lirismo.

Para Calcanhotto, palavra puxa música. Neste álbum dedicado ao falecido poeta Waly Salomão, um de seus mais importantes interlocutores e também parceiros, ela faz da poesia o fio condutor de suas linhas melódicas. Figuram lado a lado Antônio Cícero, Augusto de Campos, Ferreira Gullar, Arnaldo Antunes, Torquato Neto, Dorival Caymmi e Caetano Veloso.

“Maré”, canção que abre e nomeia o cd, introduz o tema “mar” como linguagem poética. Mar repleto de nuances cromáticas e movimentos imprevistos. A música de Moreno Veloso dá ênfase à sinuosidade dos cellos, que imprimem corpo mais acentuado ao violão propositadamente monocórdico de Calcanhotto: “Mais uma vez/ Vem o mar/ Se dar/ Como imagem/ Passagem/ Do árido à miragem/ Sendo salgado/ Gelado/ Ou azul/ Será só linguagem”.

A compositora costuma trabalhar com o mesmo elenco de músicos, o que lhe possibilita vôos sempre mais altos e seguros, num pacto de fidelidade que se estabelece em diversas instâncias - nos cenários, na direção artística e nos parceiros musicais. “Maré” foi sendo construído na base de diálogos: criações, re-criações, transformações. Em entrevista concedida ao poeta e professor Eucanaã Ferraz ela diz: “Gosto do aprofundamento das relações com meus colaboradores, acho que a contribuição deles é que me interessa, não o compromisso com a fidelidade, embora eu seja fidelíssima, por convicção. Muitas vezes demoro pra decidir chamar alguém exatamente porque pretendo diálogos reais e enriquecedores e jamais chamaria alguém só por amizade, inércia ou qualquer outro motivo externo às motivações do projeto em questão. Aprendo muito com essas pessoas todas, cada vez mais, não vejo motivo para não estar com elas. São elas mesmas, muitas vezes, que trazem novos nomes para o círculo de colaboração. Nesse sentido, em “Maré” acho que consegui me repetir como nunca”.

“Teu nome mais secreto” é a derradeira canção da parceria Calcanhotto/Salomão. Composição que demorou a ser concluída, pois o letrista em sua verborragia barroco-baiana insistia em enxertar cada vez mais versos numa progressão infinita: “Eu não conseguia formatar a música porque a letra crescia como se não houvesse amanhã”. Essa canção é composta por contrastes que fortalecem o estilo hermético de Waly. A música é densa, os desejos eróticos são expressos nas palavras e no arranjo que trabalha os movimentos de contenção e distensão. O violão de Jards Macalé, resgatado dos velhos tempos do “Transa”, transmite uma sonoridade única: “Só meu sangue sabe tua seiva e senha/ e irriga as margens cegas/ de tuas elétricas ribeiras/ sendas de tuas grutas ignotas/ Não sei, não sei mais nada/ Só sei que canto de sede dos teus lábios”.

O baixista Dé Palmeira é figura onipresente em quase todos os discos da artista, não somente como músico, mas também como compositor e parceiro intelectual. Em “Maré” surgem duas composições dele, “Seu pensamento” e “Mulher sem razão”, esta última composta em trio com Bebel Gilberto e Cazuza. “Mulher sem razão” passou praticamente despercebida no disco “Burguesia”, o último da carreira de Cazuza. Considero esta a melhor música de “Maré”, impecável em sua letra, arranjo e interpretação.

“Mulher sem razão” é uma das canções que revela o quanto Calcanhotto está cantando bem, cada vez mais afinada. Sua voz pequena, sem grande extensão, é muito bem colocada e sua interpretação soa leve, límpida e sem o mínimo esforço vocal. A marca do canto de Calcanhotto é a pureza absoluta, voz sem vibratos e recursos artificiais. Ela parece cantar descompromissadamente, sem microfone, sem estúdio, sem palco.

O mar resplandece em gotas cristalinas em “Sargaço mar”, belíssima composição de Dorival Caymmi. Em “Maritmo” a artista abriu o diálogo com Caymmi ao interpretar junto com ele “Quem vem pra beira do mar”. Calcanhotto elege Caymmi, pois este fala a sua linguagem, a da poesia pura, sem excessos. “Sargaço mar” traz apenas a voz da cantora e o violão de Gilberto Gil que, como a voz de Caymmi, é de uma doçura grave e serena: “Quando se for/ Esse fim de som/ Doida canção/ Que não fui eu que fiz/ Verde luz verde cor/ De arrebentação/ Sargaço mar/ Sargaço ar/ Deusa de amor, deusa do mar/ Vou me atirar, beber o mar/ Alucinado, desesperar/ Querer morrer para viver/ Com Iemanjá, Iemanjá Odoiá”.

“Onde andarás”, pérola da parceria Caetano Veloso/Ferreira Gullar, é resgatada por Calcanhotto numa interpretação que vai na contramão do tom irônico registrado por Caetano na antiga gravação: “Eu achava que, com as imitações de Orlando Silva e Nelson Gonçalves, Caetano imprimia um certo distanciamento da pungência desbragada do poema – que eu pretendia encarar”. Os agudos da voz da cantora dão colorido à seiva poética dos versos de Gullar e o “mar” figura novamente no cenário idílico do Rio de Janeiro: “Onde andarás nesta tarde vazia/ Tão clara e sem fim/Enquanto o mar bate azul em Ipanema/ Em que bar, em que cinema/ Te esqueces de mim”.

Tarumim é a mãe das águas doces e, no entanto, lhe dediquei um disco com mulheres de águas salgadas. Tarumim, menina sereia, semente de vida: que o canto de Tétis embale seus sonhos.

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