quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Geraldo Carneiro:um deleite para a alma


Semana passada fiz uma brevíssima explanação sobre “o que é literatura”, numa turma de cursinho pré-vestibular em Juiz de Fora. Não é nada fácil falar sobre um conceito tão vasto, num programa que exige muita rapidez e absoluto poder de síntese. Aqueles jovens, na verdade apenas interessados em “macetes” específicos para o vestibular, ficaram surpresos quando eu disse que poesia não era necessariamente aquele verso que tinha uma rima, uma métrica e que falava de amor. Mais interessados eles ficaram ainda quando levei alguns exemplos de poemas concretos de Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari: “Quer dizer”, disse um deles, “que poesia é uma coisa que parece às vezes ser tão fácil, tão concreta, mas na verdade é muito difícil?”

Essa questão do meu aluno me retorna agora, quando ouço o cd Gozos da alma, do poeta e letrista Geraldo Carneiro. Gozos da alma/ À flor da língua é um belo álbum que traz um encarte-livreto-de-poemas (À flor da Língua) e um cd das canções de Geraldo (Gozos da alma), em parceria com Francis Hime, Wagner Tiso, Jacob do Bandolim, Egberto Gismonti, Astor Piazzola, John Neschling, Eduardo Souto Neto e Nando Carneiro.

O poeta Geraldo Carneiro é homem das palavras – “sou animal em surto de poesia/ devoto das revoltas do lirismo,” (...) “sempre fui traficante de palavras/ falácias, florações, flores do mal” (...) “me deleito no leito da poesia/ a deusa que me acolhe com constância” (...) “a poesia é o pó que me incendeia/ o resto é o sol que gira ao meu redor”.

O homem Geraldo Carneiro é poeta das palavras – não “em estado de dicionário”, mas vivas, pulsantes em seus múltiplos canais. Além de poeta e letrista, ele milita também por outras áreas como o cinema e a televisão. Carneiro adaptou para a tv o romance “O sorriso do Lagarto”, de João Ubaldo Ribeiro, e mais recentemente foi um dos redatores da minissérie JK.

O que me impressiona em Geraldo Carneiro é sua erudição, sua delicadeza e sua simplicidade. Com os cabelos longos que lhe conservam o ar juvenil dos tempos em que era um dos poetas mais jovens da chamada “poesia marginal”, esse mineiro de Belo Horizonte flana pelo Rio de Janeiro como se carioca fosse. O poeta circula solto pela fina flor da cidade, da zona sul aos redutos do mais puro samba de raíz. Um dos maiores luxos é participar de suas oficinas literárias que funcionam aos sábados no Centro Cultural Cartola, na Mangueira.

O álbum Gozos da alma denota bom gosto e lirismo. As letras de Geraldo Carneiro exaltam a paixão, as mil e uma faces do amor que o filiam ao cânone de todos os tempos, Camões, Shakeaspeare, Dante. A atmosfera ultra-romântica da canção “Olha a lua”, que me leva ao filme “A voz da Lua”, de Fellini, mostra o poeta enamorado pela musa-lua, sua confidente nos tormentos existenciais: “Olha a lua/minha doida, minha triste colombina/conta por que sofres tanto assim/ será que é pouca/ a minha alma louca de arlequim/ e dentro de mim um sonho danado/ de viver embriagado/pelo lado avesso?”. Não é que aqui Geraldo Carneiro parece ter se apossado um pouco de seu conterrâneo Alphonsus de Guimraens, quase se assumindo como uma espécie de um Alphonsus pós-moderno?

“Olha a Lua” foi escrita em 1979, em parceria com o maestro John Neschling. A primeira versão, gravada pela cantora Olívia Byington em 1980, levou um arranjo diferente da versão atual, em que ela canta apenas acompanhada pelo violão de Pedro Jóia. A voz de Olívia, uma “soprano quase lírica”, se casa muito bem com o acompanhamento do violão. O arranjo possibilita um encaixe perfeito com a letra de Geraldo Carneiro, recriando a ambiência romântica do tempo dos violeiros.

“Gozos da alma”, parceria com Francis Hime e que dá título ao cd, é um samba pungente. A letra é uma mistura de fragmentos do poeta barroco John Donne e fragmentos de poemas do próprio Geraldo Carneiro: “Gozos da alma, estou partindo agora,/ chegou a hora de partir, mas não/ te deixo só porque não pode ser,/ porque deixei todo o meu ser contigo,/ não pode ser porque te levo em mim,/ vou te levar comigo até o meu fim”. Francis Hime, aliás, é um dos parceiros mais constantes do poeta, tanto que o pianista, maestro e arranjador lançou recentemente seu “Arquitetura da flor”, que é quase inteiramente dedicado à sua parceria com Geraldo Carneiro.No pequeno livro de poemas que acompanha o cd, intitulado “À flor da língua”, figuram poemas românticos e essencialmente metalingüísticos. A musicalidade forte se faz sentir também nesses poemas, que em certos momentos parecem se comunicar com a sonoridade e o ideal de “sublime”, presentes na estética simbolista: “soníferos eu lanço contra as feras/ que me devoram a solidez do sono./ a solidão em si não me apavora./os outros são o inferno, o purgatório/ e às vezes são também o paraíso”.

Geraldo Carneiro transita entre eros e tanatos: sereias, estrelas, luas, noites, sonhos, paraísos, feras, flores, primaveras, outonos, navios, loucuras, revoltas... A vida pulsa na dor e na alegria que escorrem de seus versos. “É melhor ser alegre que ser triste”, já dizia Vinicius, outro poeta da paixão. Carnavalizar é uma das saídas existenciais que Geraldo Carneiro aponta, como quer o poema visual que reproduz a vida-só-liberdade-solidão de uma ave:


A vida é uma vida só
A vida é uma ávida
A vida é uma ave
A vida é uma
A vida é
Só uma

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