sexta-feira, 19 de dezembro de 2008


Encontro com Calcanhotto



Em crônica recente dediquei Maré, de Adriana Calcanhotto, à minha sobrinha Tarumim, que ao completar dois meses semana passada deu seu primeiro mergulhinho nas águas salgadas do mar de Barceloneta . Não se trata de lenda de pescador, meu irmão que é professor de natação para senhoras e bebês já está querendo transformar a filha em atleta.

O som de Maré ainda ressoa em meus ouvidos, tanto que não poupei esforços para me despencar às pressas de Juiz de Fora para o Rio. Calcanhotto participou de um debate promovido pelo jornal “O Globo” no Teatro Casa Grande, que teve como entrevistadores os jornalistas Arnaldo Bloch, Antônio Carlos Miguel e o professor e poeta Eucanaã Ferraz.

Teatro lotado, no palco Calcanhotto é o bendito fruto entre os homens (violão é palavra masculina). Com calça e camiseta pretas sob um casaco cinza de tecido leve, que faz referência ao figurino do espetáculo “Maré”, a artista traz na medida certa a elegância, a sobriedade e o senso de fino humor.

Organizado em dois tempos, um para os entrevistadores, outro para perguntas da platéia e dos internautas, o bate-papo fluiu tranqüilo, com várias questões referentes à sua carreira e principalmente à forte relação que a compositora/cantora gaúcha mantém com a literatura e as artes plásticas.

Calcanhotto é cantora, mas descobri pelas palavras de Eucanaã que ela na verdade não gosta muito de exaltar essa faceta. Considera-se uma “performer” que canta, não se preocupa somente com o desempenho interpretativo, a modulação e extensão de sua voz. Calcanhotto é uma artista que “pensa a música” e aí reside sua inteligência e sedução.

Eucanaã inicia a conversa citando o escritor português Eduardo Prado Coelho: “As letras de Adriana Calcanhotto são extremamente bem construídas, e revelam um saber ou uma intuição poéticas absolutamente surpreendentes. Nunca escolhem o discurso arqueado, o fraseado sumptuoso, a cascata verbal...”.

Eucanaã não poderia ter escolhido citação melhor. Calcanhotto traz como princípio de sua criação o depuramento aliado à estética minimalista. Tudo que faz parece passar pela “faca só lâmina” de João Cabral. Já compôs até música para interpretar com Hermeto Paschoal, mas elege sempre uma seqüência simples e direta de acordes para tocar em seu violão. Confessou que a música com letra desde muito cedo a arrebatou e que procura trabalhar com muita dedicação nas letras de suas composições, pois se considera limitada como instrumentista.

Ela responde a todas as perguntas que lhe fazem (inclusive sobre o ministro Gilberto Gil), porém parece pretender deixar sempre uma incerteza a cada intervalo entre uma interrogação e outra. Por um instante, fiquei pensando que ali Calcanhotto não era Partimpim e, no entanto, estava exercendo sutilmente uma performance no jogo de sedução que compartilhava com a platéia. Lembrei-me da música Senhas, que nomeia seu segundo cd, uma espécie de canção-manifesto que escancara em linguagem simbólica e sugestiva seus pressupostos estéticos: “Eu não gosto do bom gosto/Eu não gosto de bom senso/Eu não gosto dos bons modos/ Não gosto/... Eu agüento até os estetas/Eu não julgo competência/ Eu não ligo pra etiqueta/ Eu aplaudo rebeldias”.

Algumas perguntas bem-humoradas surgem da platéia, como a de um rapaz que lhe indagou se já havia feito pacto de sangue, provavelmente motivado pelos versos de Mais feliz: “Rimas fáceis, calafrios/ Fure o dedo faz um pacto comigo”. Calcanhotto sorrindo responde com o gesto de unir um dedo ao outro: “Pacto de sangue, assim? Quando eu era criança, depois fiz pacto de amor”.

Calcanhotto aproveita a oportunidade do encontro em tom informal para desfazer alguns mitos que depois de quase vinte anos de carreira ainda a perseguem: “Fiquei famosa por ser uma cantora de churrascaria, quando na verdade eu só cantei duas vezes numa churrascaria”. A cantora diz que foi uma experiência importante cantar para si mesma diante do público da noite, que não prestava atenção “Eu sempre achei interessante o lance das pessoas não prestarem atenção, as pessoas querem cover, eu ia fracassar pois não sei fazer cover”. Calcanhotto fazia da desatenção dos outros seu laboratório.

As respostas eram entremeadas pelas canções que tocava ao violão, resgatou Cariocas e Inverno para satisfazer a platéia da Cidade Maravilhosa. Retomando o tema "Mar", que percorre todo o cd recém-lançado, afirma que não consegue mais viver longe do mar, que lhe faz bem saber que pode encontrá-lo bem perto.

Uma brecha para a exposição de seus novos projetos surge quando alguém da platéia lhe pergunta se já pretendeu escrever livro. Sincera e meio tímida, “sou uma cantora de inclinação existencialista”, revela que tem o projeto de lançar um “relato de viagem” (depois de tomar alguns remédios para curar uma forte gripe durante uma temporada em Portugal, ela sofreu imensos efeitos colaterais e alucinações): “Nunca pensei em livros. Escrever o livro “Saga lusa” foi o que me tirou do susto”.

No “Auto-retrato” que escreveu em 1996 para o “Caderno Mulher” do Jornal do Brasil Adriana declarou: “meus amigos dizem que eu mudo muito”. Com a platéia afirmou: “Não gosto de ser cristalizada”. Com certeza é por isso que não é possível desvendar suas “senhas”. Salve Calcanhotto e suas rebeldias!

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