sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

Calcanhotto pós-moderna: a exatidão na simplicidade




Partimpim. Partimpim? Partimpim-Pirlimpimpim? Que palavra, que artista é essa de nome tão exótico que nos remete à palavra mágica dita pela Emília de Monteiro Lobato? Partimpim é uma espécie de solução mágica desenvolvida pela cantora e compositora Adriana Calcanhotto na infância, quando não conseguia pronunciar seu tão empolado sobrenome. Em seu último cd, a palavra “Partimpim” é resgatada com toda a sua força poética e lúdica. Um disco dedicado às crianças, mas que não subestima sua capacidade, e por isso mesmo acaba agradando também aos adultos. O design do encarte, a escolha do repertório, os arranjos, tudo se encaixa numa síntese perfeita, resultando num trabalho de uma artista madura.
Partimpim traz a marca da inventividade, com o auxílio de uma precisão técnica que prima pela beleza enxuta. Escrever é cortar palavras, já dizia Drummond. A cada novo trabalho, Adriana vai se depurando mais ao optar por cada vez menos. A estética minimalista é a mola mestra dessa compositora que persegue a exatidão na simplicidade. Ao comentar seu disco anterior, Cantada, Calcanhotto enfatizava: “Nossos desejos somados fizeram com que todos os processos da feitura do disco fossem balizados pela idéia de ´tirar´: tirar os excessos, tirar os enfeites, tirar acordes, cortar vozes, solos inteiros, repetições, sobras, gorduras, over-actings, efeitos, citações, plug-ins, enfim, jogar no lixo tudo o que não parecesse essencial’.

O acabamento gráfico sempre primoroso é um dado que se destaca em seu trabalho, desde o primeiro disco. Ali, com trajes em cores primárias e fortes, vemos Adriana com um ramo de flores amarelas nas mãos, apoiada no beiral de uma casa-cenário que alude às cores da bandeira brasileira. O diálogo constante com as artes visuais – cinema e principalmente pintura – é muito bem conduzido, dada a habilidade da compositora em trabalhar com citações, recortes e colagens. Calcanhoto é uma artista essencialmente pós-moderna: “as coisas todas para mim são misturas. Gosto dos autores, daquela cabeça, daquele ponto de vista, daquela canção ou daquele quadro, daquele experimento. Tudo isso junto são as coisas de que eu gosto”.

Senhas, o segundo disco, que leva um título emblemático, compatível com o caráter iconoclasta da canção homônima, mostra todo o burilamento plástico de Adriana. Na canção Tons, dedicada a seu conterrâneo, o pintor gaúcho Iberê Camargo, ela brinca com as tintas: Roxos/Todos/Pretos/Partes/Pratas/Andrades/Azuis/Azares/Amarras/Amar/Elos/Amargores/Calipsos/
Cortesias/Cortes/Corese/Rancores/Luzes/Milagres/Lilases/Rosas/Guimarães/Mulatos/Dourados/Rubores/Castigos/Castanhos/Castores”.Calipsos/Cortesias/Cortes/Corese/Rancores/Luzes/Milagres/Lilases/Rosas/Guimarães/Mulatos/Dourados/Rubores/Castigos/Castanhos/Castores”.

Já na música Esquadros Calcanhotto anuncia seu “olho armado”, flerta com as cores fortes da pintora Frida Kahlo e do cineasta Pedro Almodóvar: “Eu ando pelo mundo prestando atenção/ Em cores que eu não sei o nome/ Cores de Almodóvar/ Cores de Frida Kahlo, cores”. Além do constante trânsito com as artes plásticas, Adriana mostra-se à vontade no diálogo com poemas e poetas; não só estrangeiros, a exemplo de Gertrude Stein e Mário de Sá-Carneiro, como também nomes representativos do cânone brasileiro, principalmente Drummond.

Mas o intercâmbio se faz mais intenso com poetas da linhagem tropicalista e suas vertentes, como Waly Salomão, Antônio Cícero, Arnaldo Antunes e Alice Ruiz. Em A fábrica do poema, onde dialoga intensamente com o fazer literário, a compositora “extrai melodia” de um poema metalinguístico de Waly, aparentemente anti-musical. Dedicado à arquiteta Lina Bo Bardi, a construção do “poema-letra” remete à secura de João Cabral: “Sonho o poema de arquitetura ideal/cuja própria nata de cimento encaixa/palavra por palavra, tornei-me perito em extrair/faíscas das britas e leite das pedras/acordo”.

Adriana Calcanhoto revela-se a cada momento, e mais ainda neste A Fábrica do Poema, uma compositora de grande ousadia ao transformar em música meras citações, impressões, falas as mais corriqueiras do cotidiano. Como na canção Por que você faz cinema?, onde ela consegue musicar as palavras do cineasta Joaquim Pedro de Andrade numa entrevista ao jornal francês Libération. Coisa de quem possui o “dom do partimpim”, de quem saber usar sua varinha de condão só “Para chatear os imbecis,/para não ser aplaudido depois de seqüências/dó de peito,/para viver à beira do abismo, para correr o risco de ser/ desmascarado pelo grande público,/para que conhecidos/e desconhecidos se deliciem”.

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