quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Caetano, sempre ele


Estou para escrever sobre Caetano faz tempo, mas o texto teimava em não sair: Os ícones costumam me assustar. Andava meio de mal com o Caê desde os tempos do “Circuladô” – achei que ele havia encerrado ali sua carreira gloriosa. O Caetano que se transformou em pensador da cultura brasileira em “Verdade Tropical”, filósofo midiático, entusiasta de Fernando Henrique e intérprete de “Sozinho” do Peninha, era uma figura bastante diferente da que eu e tantos outros fãs conheciam.

Essa relação de amor e ódio que vim nutrindo pelo baiano se renovou em paixão de descoberta. E como é deliciosa essa sensação de encontro total. Com um disco, um livro, um amigo, um namorado, uma tarde de sol, uma noite de lua, um segundo de contemplação. Vem à minha mente o belo conto “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector. Nele a autora descreve com seu lirismo intenso e delicado o encontro de amor entre uma menina e o livro “Reinações de Narizinho”, de Monteiro Lobato. O enlevo e a surpresa invadem o momento do encontro epifânico, que não resisto em transcrever:

“Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes. Criava as mais falsas dificuldades para aquela coisa clandestina que era a felicidade. A felicidade sempre ia ser clandestina para mim. Às vezes sentava-me na rede, balançando-me com o livro aberto no colo, sem tocá-lo, em êxtase puríssimo.Não era mais uma menina com um livro: era uma mulher com o seu amante”.

Caetano é um clariceano de carteirinha, que compôs “O nome da cidade” inspirado na personagem Macabéa. Que mistério tem Caetano? O meu affair tem se dado com “Cê”, o mais recente trabalho do artista lançado em cd de estúdio, ao vivo e dvd. “Minha música vem da/ Música da poesia de um poeta João que/ Não gosta de música/ Minha poesia vem/ da poesia da música de um João músico que/ Não gosta de poesia”. Talvez um pouco João Gilberto, um pouco João Cabral, talvez tanto, já que o “leão de fogo” sempre quis muito e jamais pareceu ser modesto.

Em “Cê” Caetano dialoga com o álbum “Transa” de 1972 e regrava composições como “Nine out of ten” e “You don’t know me”. “Cê” é um disco de rock, mas com o apuro minimalista que leva a assinatura Caetano Veloso. “Cê” prima pela economia sonora que já vem anunciada no título, segundo o compositor “Cê” simboliza a inicial de seu nome, uma marca da fala coloquial e também a força da concisão silábica.

“Cê” tem como uma das maiores virtudes o som “sujo”, meio pesado. Ao lado dos jovens músicos Pedro Sá, Ricardo Dias Gomes e Marcello Callado, Caetano une a sabedoria e experiência à novidade, resultando num mix no mínimo muito original.

Depois de “ser neguinha” e “mulato franzino”, Caetano se mostra muito masculino em “Cê”. Mas camaleônico que é, desliza intencionalmente indo contra a via e nadando contra a maré em “Amor mais que discreto”, composição assumidamente gay: “Talvez haja entre nós o mais total interdito/Mas você é bonito o bastante, complexo o bastante/bom o bastante pra tornar-se ao menos por um instante/ o amante do amante que antes de te conhecer/Eu não cheguei a ser.” A onipresença da masculinidade nas demais canções sinaliza o ânimus de Cê/Caetano em busca de uma desconstrução/afirmação identitária.

Repleto de metáforas sexuais, o disco é uma solitária ode ao, vamos dizer, entusiasmo erótico. O compositor celebra suas musas em composições dionisíacas como “Deusa urbana”, “Outro”, “Musa híbrida”, “Odeio” e “Rocks”. Entendo agora a afobação de Luana Piovani ao querer espalhar pelos mil cantos do mundo que “Um sonho” foi dedicada a ela. Ironicamente Caetano confirma a dedicatória à musa global, porém diz que é parcialmente inspirada. Ah bruta flor do querer!

“Um sonho” é a canção mais lírica do cd, belíssima em sua riqueza de jogos metafóricos: lua/fruta flor folhuda/ ah! A trilha de alcançar-te/ galho, mulher, folho, filhos/ malha de galáxias/ tua pele se espalha/ ao som de minha mão/ traçar-lhe rotas/ teu talho, meu malho/ teu talho, meu malho/ o ir e vir de tua/ o ir e vir de tua ilha/lua/toda a minha chuva/ todo o meu orvalho/ cai sobre ti”.

O desejo vivido ou interdito é descarregado nas composições que esmiúçam muitos detalhes da sexualidade feminina. Em “Homem” Caetano expressa o seu complexo orgástico, ao mesmo tempo em que se orgulha de sua masculinidade. Permanece o “homem comum enganado entre a dor e o prazer” de “Peter Gast”: “Não tenho inveja da maternidade/nem da lactação/não tenho inveja da adiposidade/nem da menstruação/só tenho inveja da longevidade e dos orgasmos múltiplos/ Eu sou homem/ pele solta sobre o músculo/ eu sou homem/ pelo grosso do nariz”.

A sensualidade desponta em “Deusa urbana”, canção onde se percebe o quanto Caetano está cantando bem: diga-se de passagem, cada vez melhor. Ele ousa nos falsetes que resultam num contraponto interessante entre o som mais cru da levada rock e as nuances melódicas. Entre a audácia e o recuo o artista se atira aos prazeres da musa: “Com você eu tenho medo de me conformar/ Eu tenho mesmo medo de não me conformar/ sexo heterodoxo, lapsos de desejo/ quando eu vejo o céu desaba sobre nós/ mucosa roxa/peito cor de rola/ seu beijo, seu texto, seu queixo, seu pêlo/ sua coxa”.

O Caetano que fez sua língua “roçar na língua de Luís de Camões” volta a brincar com as origens em “Por quê?”, composição com letra em três versos que em tom de humor conduz em som o momento do gozo de um português. Ele canta com sotaque lusitano e a música acompanha o movimento até a chegada do êxtase: “estou me a vir/ e tu como é que te tens por dentro?/ por que não te vens também?”

Em meio à profusão de partes lúbricas, Caetano compôs uma contundente homenagem ao poeta, letrista e agitador cultural Waly Salomão. O espírito dionisíaco desse outro baiano é evocado numa espécie de mantra. Sobressai a beleza do arranjo da canção que faz um casamento perfeito com a letra. “Waly Salomão” é uma elegia com o pulsar firme do bumbo: “findaste o teu desenho/ e a tua marca resplandece/resplandece nítida e real/entre livros e os tambores de Vigário Geral/ e o brilho não é pequeno”.

Fazer as pazes com o passado e seguir buscando incessantemente um lugar no futuro parece ser o lema do artista. Ele tenta se reconciliar poeticamente com a ex-mulher Paula Lavigne “não, nada irá nesse mundo/ apagar o desenho que temos aqui/ nem o maior dos seus erros/meus erros, remorsos, o farão sumir” e vivenciar seu processo de envelhecimento em harmonia e criação. O “homem velho” Caetano é na verdade muito jovem e segue “sempre em frente deixando sua errática marca de serpente”.

Nenhum comentário: