quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Boca de guaraná


Esse texto foi escrito para o livro Bocas, do meu amigo Paulo Violão. São tantas e tantas bocas...


Quando eu era criança sonhava usar sutiã, calçar sapatos altos e passar maquiagem. Mamãe, é claro, fez boca feia. Boca feia de quem nada gostou. Dizia-me que cada coisa tinha seu tempo, e que ser criança era o que melhor havia na vida. Ser criança para mim sempre foi muito chato. Significava tudo muito “sempre”. Sempre dormir cedo, usar sempre o mesmo uniforme da escola, escovar sempre “toooodos os dentes”, comer sempre salada, ir sempre à missa aos domingos, emprestar sempre meus brinquedos para o meu irmão, ir sempre para o colégio no mesmo ônibus escolar, sair sempre cedo da piscina (antes que a boca ficasse torrada de sol), fazer sempre os deveres da escola, não mexer nos enfeites da casa da tia Ruth. Sempre. Mal sabia eu que, quando me tornasse gente grande, os sempres, mesmo que um pouco diferentes, nunca deixariam de existir.


“Autodidata”, aprendi a maquiar sozinha; primeiro outras meninas, é claro. Minhas obedientes bonecas eram a Marisa, a Marivalda, a Priscila e a Clarice. A grande companheira mesmo era a Marisa, que aceitava de boca calada e sem revolta todos os “make-ups”. Ela era “fashion”, tinha pele branca, barriga de tanquinho e cabelos e boca tão vermelhos como os de Rita Lee.


Marisa era a famosa boneca “amiguinha”, grande e com a aparência de uma criança de uns cinco anos. Eu fazia barbaridades com ela. Como usávamos praticamente o mesmo tamanho de roupa, todos os meus vestidos, shorts e camisetas lhe cabiam bem. Exceto as calças boca de sino, que mais pareciam as bocas das casquinhas de sorvete de cabeça para baixo. Nela tudo ganhava um novo “look”, quando eu abusava dos acessórios: pulseiras de caneta (juro que existiam: eram canetas que se enroscavam na forma de pulseiras coloridas), anéis de camelô e tatuagens de chicletes “ploc”.


A maquiagem era feita minuciosamente, valorizando os detalhes do rosto de Marisa. De início, eu limpava sua pele com sabonete “lux luxo”, em seguida passava leite de rosas para deixá-la bem cheirosa. Ficava até meio de dar água na boca a minha Marisa. Como eu só tinha uma base muito escura, cobria seu rosto com uma camada de talco. Daí Marisa voltava a adquirir novamente sua tez de boneca, só que meio Michael Jackson. Aí já era meio “boca na água”.


As sombras muitas vezes eram substituídas por canetinhas hidrocor de várias cores. Suas pálpebras viravam um verdadeiro arco-íris. As mesmas canetas serviam também para embelezar suas bochechas. Fazia uma bolinha vermelha em cada lado da bochecha e esfregava bastante para conseguir um tom uniforme. Era mesmo de dar água na boca.


O melhor de toda a produção era o toque final. Nenhuma mulher chique podia ficar sem batom, pensava eu enquanto lambuzava a boca de Marisa com manteiga de cacau e vários batons da mamãe. Boca louca. Louca boca se transformava a boca de Marisa. Carnuda como a boca de Angelina Jolie, boca carnuda como a de Sophia Loren.


Boca grande e sempre vermelha como a de Gal Costa.As bocas que desenhava para Marisa, meio que premonitórias, iriam se repetir em encontros e achados ao longo da minha vida. Ou não era de Marisa a boca murcha (quando sem trumpete) de Chet Baker? A boca suja de Dercy Gonçalves, a boca preta de Milton Nascimento, a preta e sonora e grandiosa boca de Billie Holliday? De Marisa também, tenho certeza, a boca cantante de Elis. E, é claro, a de Marisa Monte


Explorar a boca de Marisa foi sempre o meu maior deleite. Só mais tarde ganhei, como presente de aniversário, um maravilhoso estojo de maquiagem, todo meu, que pude experimentar na própria pele. “Magic face” era uma maquiagem especial para crianças, que vinha numa caixa grande como a do jogo Máster Júnior.


Papai foi comigo até o “Del Center” de Juiz de Fora para comprar o fascinante “Magic face”. Quando abri a caixa, a mágica se fez: pura ‘magic face”. Sombras amarelas, verdes, rosas, azuis e vermelhas. Pós compactos, rouges e batons das mais variadas cores. Minha vontade era de passar tudo de só uma vez nos olhos e na boca, deixar meu rosto como se fosse uma tela de Pollock.


Gostei muito da diversidade da maquiagem, porém ela não parecia nem de gente como mamãe, nem de boneca-gente como Marisa. As sombras eram secas e ásperas, iguais ao giz que a professora usava no quadro. Brilho também pareciam não ter. Como aniversário não se faz todo dia, nos meus sete anos enfeitei meu rosto como se fosse participar de um desfile de escola de samba.


“Com muitos brilhos me vesti e depois me pintei me pintei me pintei me pintei”. Cauby perderia de longe pra minha maquiagem. Minha boca ficou maior que a do Palhaço Fuzil, pois a cada camada de batom a boca crescia um centímetro. Pus na boca batom vermelho, batom rosa, batom vinho, batom marrom. Batom, batom, batom, boca boca boca boca.


Apareci na festa com a boca cheia de cor e de fome. Estava me achando linda. Não me lembro se alguém disse: uau, que boca! Mas que nada, boca nada calada, nada a ver com a do meu amigo Dnar Rocha, que pouco falava e muito pintava. Boca pintada sim, pintadíssima boca toda melada, boca macia, boca trancada, boca pequena e solta boca em busca de delírios bucais, boca-de-cajuzinho, boca-de-brigadeiro, boca-de-olho-de-sogra, boca-de-bolo, boca molhada e gostosa de guaraná.

Um comentário:

ronaldo disse...

super legal, dani.
manda brasa. bjs